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25 de junho de 2007

Não mesmo, quer saber?

Não, você não sabe como me sinto. Nem ao menos perguntei se você se importava. Estou viva. Isto é fato. Me encontro em estado de constância apreciação da vida terrena e seus prazeres. Isto é óbvio. Mas quer mesmo saber o que me impulsiona a continuar a caminhada? Tênis.

Sim, aqueles com sola de borracha e mola amortecedora de impactos. Além de confortáveis, proporcionam momentos de prazer e deleite incríveis quando resolvo tirá-los do meus pés. Minha marca predileta é allstar converse. Como a maioria daqueles que sofrem da mesma idade que eu. Não sou tão jovenzinha assim como falam. Também não passei dos trinta. Tô na fase intermediária. A mesma que muitos (bem-aventurados) estão, e que se vangloriam tanto a ponto de espancar pessoas em paradas de ônibus. Disso eu não gosto.

Mas tem muitas outras coisas a mais no universo que me incomodam. Uma delas é a combinação do calor plus (vulgo +) falta de sorvete de brigadeiro. E eu adoooro brigadeiro. Um dos pecados que me fazem lembrar do simples fato de estar viva. Aí eu volto pro início. Sabe como é, né? Respirar, não sentir dor, caminhar tranquila, dirigir meu carro sem problemas aleatórios e de causa acidentalística.

Sim, sobrevivi a um deles. E sim, eu gosto de inventar palavras. Mas não vem ao caso. Desta vez, aquele 'acaso', bem maltratado pelo tempo e desgastado pelo próprio significado, não conseguiu me pegar de jeito. Nem a mim, nem a ela. Acho que isso vai nos fortalecer. Sei não.

Também me pergunto se isso é um bom sinal providencial e divino sobre como eu devo me portar (ou melhor dizendo: me comportar) diante as vicissitudes da eternidade de uma vida só (grande não?). Já que a franquia do carro passou dos três zeros antes da vírgula. Porém, como tudo na vida (e hoje estou falando muito dela), me proporcionou uma nova maneira de ver e sentir o tal do 'viver e aprender'. Ou talvez, de não perceber como influencio diretamente na minha saúde mental e física.

Vamos aos exemplos práticos e rápidos: aprendi que quando uma pessoa me pede um favor eu devo pensar quinze vezes antes de dizer sim. Independente se é apenas para passar uma fase do Mário Forever ou levar um objeto de um lugar a outro sem acidentes. Pode ser perigoso para os pedestres e motoristas de plantão.

E por falar em acidente, acabo de me recordar que além de causá-los a torto e a direito, eu também sou fruto de um. Ou talvez não, mas não discutirei religião aqui. Afinal, não durmo direito tem mais de quatro dias. Minha ansiedade ainda me acompanha. E inventei de ler cinco livros de uma vez! Se é que isso, ou o resto de tamanha insignificância, importa para você.

Enfim... Esta , além de ser uma das palavras que mais gosto, soa bastante agradável em qualquer frase. Se bem que não é utilizada da forma correta. Mas confesso que não compactuo deste crime sozinha! Tanto eu quanto o resto dos brasilienses universitários a usam. Mas... quem se importa. Nem ao menos me perguntaram se conheço a forma correta de utilização das reticências!

Ninguém perguntou nada mesmo. Nem se aquele acidente de verdade, envolvendo terceiros, quartos e quintos me fez acordar de vez para a realidade da terra dos Homens adultos e Racionais ou me fez adormecer de vez no Planeta das Amoras Estelares.

Quer mesmo saber? Eu gosto de amoras. E já é tarde para uma moça da minha idade ficar acordada. Passar bem e tenha uma boa noite.

1 de junho de 2007

Um Exercício gostoso de Coisificar Pessoas

Huguinho era um menino legal. Gostava de bola-de-mascar e costumava brincar de baixo do bloco com os coleguinhas do prédio. Morava no centro-sul (se é que é possivel) da grande cidade pequena. Não era mais uma criança, tinha até barba. Mas ele inspirava muita gente a querer o bom e o melhor em tudo. E nao estou falando em dar o melhor de si, e sim lutar por um mais melhor pra todos.

Não havia ninguém que não gostasse do seu jeitão de resolver as paradas. E ele sabia muito bem o que fazia e a relevancia de levar o conhecimento aonde fosse. Seja no trabalho de escritor (e ele era um bom escritor), ou ainda distribuindo panfletos na rua (ele também era bom nisso). Tinha os do contra, aqueles que torciam para que algo desse errado, ou que 'alguem' quebrasse a perna no meio fio. Mas Huguinho nao ligava para eles. Nao aparentemente. E isso era bom. Em partes. Mas nao discutiremos isso aqui. Nao é importante.

Hugo queria salvar o mundo. Não só da ignorancia que o cerca, como pela proteção de Gaia. Como uma mulher, a terra de canela é vista por ele com uma importancia devida. Quer protegê-la. É o seu melhor cavaleiro. E com a sua própria espada ele vai de encontro a aqueles que nao a querem bem. Sempre em guarda, o rapaz ajuda os necessitados com ideia imaginativas e belas construções filosóficas do que é ser um Humano. Pena que ele nao se classifica muito como um, mas sabe que é.

Durante muito tempo, os dias eram ensolarados e as noite um pouco frias. A lua cheia era uma inspiração aos mais apaixonados, e Huguinho era um deles. Sempre olhava pra ela como a uma mulher. Aquela que um dia, provavelmente, iria encontrar. Sem pressa, sem pressões. Cada garota, cada momento poderia ser 'aquele'. Mas para toda busca incessante tem sempre os escudeiros do cavaleiro, e Hugo tinha vários.

Dentre eles se destaca o Cavaleiro Louco. A alcunha veio de uma conversa calorosa sobre a Távola Redonda. Enquanto Hugo, que gostava muito de sacerdotes, se proclamara o bardo do grupo, o Cavaleiro optou por não ter um nome dentre os homens de Arthur. Sei porque nao. Muitos dos amigos preferiam chamá-lo de bravo Galahad, mas ele nao gostava. Na busca do Graal de Hugo, o Cavaleiro Louco era o mais afoito. Queria ajudar o amigo tanto quanto ele o ajudara com sua amada. E talvez, o graal nem fosse mesmo uma pessoa. A busca era um algo com 'quê' Filosófico do que uma caçada a donzela da floresta.

Hugo é afortunado, e o mais engraçado, é que ele sabe disso. Desde muito jovem, livros, nanquim e papel era o que precisava para ser feliz. Quando chegava, os meninos se orgulhavam do amigo, enquanto as garotas suspiravam e sonhavam em ser a tal donzela. Mas isso nao vem ao caso. O caso é que Huguinho sempre salvava o dia. Podia ser com um sorriso, ou até mesmo com uma palavra aspera. Ele sempre sabia o que falar.

Um dia, qualquer um deles, ele resolveu ser ajudado. Nao pelo Cavaleiro Louco, nem por nenhum dos meninos do grande grupo que formara havia anos lá na escola. Desta vez foi por uma Cachinhos Dourados. Era uma amiga tao afortunada como ele. Alegre mais que a Pollyanna do livro da Eleanor. Sempre contente com tudo e querendo levar o bem a todos. Mesmo que esses 'todos' nao o quisessem. Mas no fundo todo mundo quer... Era um bem que poderia transformar os dias ensolarados e as noites frias de luar em um jornada mais confortável pelas terras áridas do cerrado.

Ele nem sabia que precisava. Ninguém sabe quando precisa de ajuda. Só precisa. E com Huguinho nao foi diferente. Era fim de tarde. O céu estava começando a escurecer por conta da chuva que vinha rápido. Ele nem iria ao encontro da amiga, mas resolveu ir. Ele confiava na magia, e principalmente na sabedoria que tanto buscava nas coisas. E se o mundo gira, porque nao acompanhá-lo.

E foi assim que o conheci. O nome dele nao é Hugo, e sim Luiz. E a tal busca do Graal nunca chegou a existir. Mas passo o maior tempaozao pensando em coisas bacanas pra dizer pra ele. E em como o mundo, que é cinza e está sendo destruído pela humanidade, se transformou em algo diferente. É um algo que só quem acompanha o crescimento dos outros com atenção, pode perceber. Não são nuvens cor-de-rosas no final do dia, nem palavras sem emoção. É um algo que procuro guardar só pra mostrar pra vocês.

Se chama: escrever...

23 de maio de 2007

Dormindo no Hospital

Velho, cerca de uns setenta e dois. Alto, mais ou menos um e oitenta. Cabelo e barba curta, ambos grisalhos. Olhos amendoados e jeitao porreta. Esse é Severino, que anda pra cima e pra baixo no Hospital. Tem muitas manias que ninguém sabe porque as comete. O que se sabe é que de tanto fazer se tornou cômico, para nao dizer tragico.

Severino é um senhor bacana e nao tem pinta de bacana. Ranca a roupa, mija na calça e come as fraudas. O tempo todo tem neguinho e branquinho gritando no corredor: '- Vai pra lá, Severino!'. Mas ele nao vai. Tem muito o que fazer ali. Já tentaram de todas as formas, descobrir de onde diacho o bicho veio. O que se sabe é que no domingo ele baixou por lá de carona com os bombeiros. Tava como naquela velha música de vitrola: maltrapilho e maltratado. O mais importante é que ele tava com saúde. Ou quase isso.

O quadro de desnutrição era grave. Muito magro, Severino nao soube nem o que por ali fazia. Toda hora levanta e aí é um fuzuê danado. E lá vem gente gritando: 'O home nao queta!' Antonte de madrugada inventou que queria comprar pao. Iracema foi logo reclamando: "se aquete, home! Tem pao qui nao!". As enfermeiras ficam danadinhas quando o veem dançando no corredor. "Gosto mesmo é do Cauby, mas tem quela música do moacyr que num sei de cor, mas é bôa". E lá vai a valsa maluca de enfermeiras, médicos e seguranças pelo corredor pra fazer Severino ficar quietinho na dele.

No hospital os doentes e internados são o que há. Dos mais afoitos pela cura milagrosa, e rápida (diga-se de passagem), a funcionários mal-humorados e cheios de trabalhos. Os guardinhas são os que mais sofrem, com reclamações dos que ainda estao para entrar e pedidos de socorro contra Severino. E eles já conversaram tanto, com nosso personagem. Tem hora que parece que finalmente descobrirao de onde o homem é. Mas aí, severino guarda uma na manga e deixa a todos muito consternados.

Já falou que morava no Recanto (o das Emas), na Samamba, no Gama, em pirinópolis... Ops, este lugar ele ainda nao falou. Mas com certeza vai falar. E como fala! Homem de Deus, que severino não deixa a pobre Iracema dormir. E quase que a vaca foi pro brejo na noitinha de segunda. O velho chegou de mancinho por trás da maca de Iracema e começou a cutucar a onça com vara curta. Puxou o soro, pegou as chinelas cor-de-rosa, fez até xixi no pé da cama. Mas aí Regiany, que estava de plantao, o pegou pelo braço e ameaçou: "Ou queta, ou vai pro banho!". E nao é que deu resultado!

Mas alegria de pobre dura pouco, e severino teve alta na terça a tardinha. Muitos gritaram graças aos céus por terem protegido o resta da semana, das malcriações de uma criança com barba. Outros preferiram se abster de comentários, que certamente, estavam cheios de malidicencias. Enquanto uns e outros sentirao saudades do rapaz, que alem de mal cheiro, trouxe um pouco de diversao para as tardes monotonas daquele Hospicio. Perae, olhe lá! E nao é que Severino, que de nordestino nao tem nada, já voltou do cangaço e deseja repolsar! Vê se pode? Hospital virar dormitório, vê se pode...

15 de maio de 2007

Invisíveis somos nós

Turmas de Elementos de Realidade Regional organizam exibição e debate sobre o filme O Homem Invisível de Andréa Velloso

Foram dois dias do mês de abril. Duas exibições no mesmo auditório, o do bloco K da Universidade Católica, uma de manhã e outra a noite, mas que mexeram com o conceito do nosso papel na comunidade. Mexeram? Sim, e pretendo apresentar o porquê. Fui convidada para a primeira sessão, a de terça de manhã. Já havia assistido ao filme, acompanhado na mídia as matérias sobre o livro de Fernando Braga – que inspirou o filme -, debatido com colegas sobre como passamos despercebidos por uns, enquanto outros nos percebem. Mas confesso que assistir novamente, desta vez como convidada, foi uma experiência nova.

Resultado: me empolguei tanto que resolvi aparecer na segunda exibição, para preencher as cadeiras que poderiam estar vazias. Mas, felizmente, não estavam. No curso de comunicação, durante estes últimos quatro anos de estudante, vi pouca gente se mobilizar para assistir um filme do Cine Br, ou ainda para participar de debates sobre uma ou outra disciplina sem necessariamente estar correndo atrás de faltas ou pontos extras dos professores. Este ano de 2007 tem me assustado por isso. Muita gente começou a ‘aparecer’, sair do anonimato dos corredores e ser um atuante no curso que escolheu e na vida que pretende levar como comunicador.

Talvez seja por isso que a reação depois do filme se tornou marcante. Era evidente nos rostos de cada pessoa, a transformação obtida através da análise que aquela rotina apresentou. No filme, dona Irene, seu Nilce, Fernando e dona Maria não atuaram como personagens, foram entrelaçados em nossas vidas. Ali na tela grande, eles foram percebidos. Não eram apenas garis, mas pessoas dividindo com câmeras um dia de trabalho, os preconceitos da profissão, além de um pouco de si mesmos, como num divã. Só que, desta vez, o médico está representado nos milhares de espectadores.

O convite dos alunos foi dirigido a quem estava por perto, mas que por uma razão ou outra não é devidamente notado. Na primeira sessão os alunos se esmeraram convidando muitos funcionários da limpeza, que provavelmente, nem eles haviam percebido que tinham um nome e história. Esta última muito bem relatada pelo tão querido “tio da pipoca”, que compartilhou sua experiência de ter uma alcunha, mas de poucos saberem o nome. Parentes e pessoas próximas também estavam lá, como a Sueli, pedagoga e secretária do curso, que presenciou a entrada e saída de diversos alunos. Tantos invisíveis que não poderiam caber em uma lista. Pessoas que preferiram serem 'sem nomes', enquanto outros muitos buscam o próprio lugar.

A partir de hoje, talvez, muitos dos que assistiram ao filme O Homem Invisível poderão olhar para o colega da sala de aula que nunca atreveram a perguntar o nome, e sorrir. Verão que a “tia” que faz a limpeza no corredor do CRTV no turno vespertino se chama Sônia. Saberão que Liberato é o nome do tio da pipoca, e que talvez o nome da professora de Elementos de Realidade Regional e Brasileira, disciplina do quarto periodo do curso de comunicação da Católica, que passou um semestre inteiro a ensinar e mostrar novos caminhos do cotidiano se chama Ivany. Veremos.

20 de abril de 2007

A luz do Lampião

O velho está sentado ao meu lado. Sinto seu medo. Algo que o consome. Lembrar do passado é um passo doloroso, mas ele aceita a missão. Está armado, e sua adaga é um item precioso contra aqueles que, algum dia, juraram esquecer. O conhecimento que ele trouxe de uma vida inteira poderá ser compartilhado? Um difícil questionamento, apenas para aqueles que temem, porém desejam compartilhar de estórias, onde, o protagonista são eles próprios. Sou seu guarda e guia aos portões do tempo de sua trajetória.

Ele começa a narrativa através dos fragmentos da memória que aos poucos se esvai. Meu receio é de que muito do que foi vivido não mais seja possível transcrever. Mas continuamos. Durante a entrevista, suas palavras marcam a ferro e fogo o que dentro de mim consome como uma chama de um simples lampião. E então subitamente o velho me desarma: “como poderei saber se o que a palavra que emprego agora continuará sendo minha após este momento?” Não tenho resposta. Contudo, estória e histórias são frases, pontos e vírgulas que pronunciamos na vontade de que algo se perpetue. Mesmo que nas palavras dos que um dia lerão os escritos e reinventarão o ditado. Como foi frisado por Sônia Maria de Freitas [História oral: possibilidades e procedimentos – São Paulo: Humanitas, 2002. Página 51]: “A história oral impõe legitimidade ao presente deixando para a história os fatos do passado”.

Talvez, com o passar do tempo, sejamos apenas anedotas aos olhos dos que virão. E é bom saber que a probabilidade delas não serem esquecidas é, pelo menos, mínima. Causos são contados e, o que não é relatado, poderá ser esquecido? É fato que, como homens que somos nossa raça não ‘gostaria’ de ser esquecida. E a morte faz isso conosco. No final das contas, um dia inteiro de trabalho será esquecido. Uma vida inteira de esforço e dedicação em busca de conhecimento é esquecido. Quem gostaríamos que nos reconhecessem como produtores de saber que somos, não nos reconhece. E por fim, voltamos a ser apenas nomes riscados em cadernetas. Sem glória, sem honra. Mas felizmente, tem sempre um ou outro que nos resgata do limbo das frases ditas e nos re-significa em cultura e, com isso, nos tornaremos em saber popular. Quem sabe.

O medo que fora dele agora é meu. De continuar, de prosseguir. Não sei se meus feitos terão (para os meus netos), o mesmo significado que os dele me trazem. A dúvida persiste e a jornada também. Fui e voltei da terra sem lei. E consegui, com esforço, mudar um pouco. Através das palavras de um senhor de mais de setenta anos. Que me fitou com seu olhar simples e maduro, a espera de perguntas que não consegui fazer. Porque foi embora? Porque se arriscou em um lugar sem parentes, sem casa, sem chão? Porque razão abandonar, se é que houve abandono, uma vida toda construída na sua terra, para ir adiante? Estas palavras aqui estão engasgadas.

Mas durante a entrevista, João me trouxe uma nova possibilidade. Não era um velho falando ao novo. Era a sabedoria de quem precisou viver para ver se dava certo. Ainda no texto de Sônia Maria [página 52], as aspas de Pierre Norra se fundiram as palavras do velho simples da roça: “A história é elaborada. A memória é vivida”. E ele, o João, por sua vez trouxe outras aspas: “A gente deve continuar sempre indo em frente. Eu fiz errado, saí de Minas para cá (Estado do Pará), atravessei mais de 200 quilômetros floresta adentro e voltei cerca de 80. Você não deve fazer isso! Siga em frente sempre”. Sim senhor, irei.

29 de março de 2007

Capítulo Três

No canto sujo do apartamento sem luz

O apartamento de Fernando era realmente sujo e dividia, no corredor, vários escritórios de advogados e de lojas de bijuterias. A família Machado tem um nome bom a zelar. Todos advogados, pai, mãe e três irmãos. Fernando é o caçula e, indiscutivelmente, o mais frustrado. Formado em direito pela faculdade federal, o músico ganha a vida nos trocados dos bares no final de semana.

A grana, que não é muita, serve para duas coisas oficiais e outras tantas. Uma delas é o pagamento do condominio e água, as outras coisas se resumem a cervejas, cigarros e outros psicotrópicos. O escritório dado pelo pai de presente de formatura, se transubstanciou. Agora é um quarto-sala-cozinha meio aberto e sem divisórias. Não há energia, não sobra dinheiro. Falta muita coisa por lá. Panelas, é um bom exemplo disso. Mas não há do que se queixar. Fernando continua a levar a vida como se a adolescencia nunca fosse embora. Algo preocupante para quem já bate as portas dos trinta e não está contente com a situação.

Aprendera com o pai a gostar de música. Cada personagem da vida tem suas frustrações. O pai era músico quando jovem e adora o estilo de Crosby, Still, Nash e Young. O álbum Dejá Vú, fez sua adolescencia ser, no mínimo, excitante, por falta de palavra melhor. Woodstock e Carry On, embalavam o sono de Fernando quando ele era um pequeno bebê naquele ano de setenta e cinco.

E agora que os trinta estava claro no rádio de pilha velho que só tinha um toca-fitas, Fernando só ouvia uma só gravação no velho tape que o pai lhe dera quando a música começara a significar algo para o rapaz. Tranquila e emocionante em suas nuances. Bom era acender um tabaco e sentir fluir do corpo a essencia que a música lhe proporcionava. Mas últimamente CSNY só lhe traziam lembranças de âne.

O homem ficou bastante contente em ajudar a amiga no momento de infortúnio que ela sofria. Mas também lhe preocupava pela falta de animo para com a vida. A dele, também, era sofrida, mas não importava muito. Ele tinha a música para guia-lo nos momentos difícios. Mas e ângela? Isto o angustiava. Os meses passavam rápido naquele apartamento, as roupas acumulavam para lavar, o dinheiro não sustentava mais nem o consumo das velas, única fonte de energia da casa. E com isso as brigas.

Todos os dias, ele dizia como um mantra em declaração a amiga querida:"Garota, você não pode passar a vida inteira sentada nas almofadas das angustias e esquecer que o dia está bonito, e a noite sempre tras bons presságios! Levante! AGORA!". Mas âne nao reagia. Não tinha vontade. Não queria. E somente a música embalava os pesadelos em que eles viviam. Num apartamento-ex-escritório-sujo no centro da cidade.

26 de março de 2007

Capítulo Dois

A esmo, ou o relato de ângela em primeira pessoa, antes do prédio

"Estive caminhando pela cidade. Meio grogue meio alta, sem saber ainda porque diacho havia parado naquele bar e tomado aquela cerva. Não, isso não é um momento de arrependimento, só frustração por ter esquecido como tudo começou. E por falar nisso, vamos ao relato: imagine a cena. Garota alta, vinte e oito anos, porte de modelo do zimbabue, desempregada, trajando apenas chinelas gastas, um pano que um dia muito distante foi chamado de calça jeans e camiseta preta, preta.

O que uma pessoa como essa faria num bar em plena terça-feira? Bom, neste caso, a desilusao de ter perdido emprego e 'casa' ao mesmo tempo havia me levado a tomar uma(s) dose lá no butequim do Seu Geraldo. Comecei cedo ainda, nao eram nem dez da noite quando Fernando me chamou para conversar. Ele percebera a constatação do óbvio que minha face apresentava no momento. E resolveu me ajudar. "O que foi minha pequena?".

Comecei falando do desemprego imediato. Trabalhei na loja da martinha a minha vida toda. Nem sei direito como e quando comecei lá. Mas faz muito tempo. Acho que ainda estava no colégio quando aconteceu. Lá eu vendia de tudo, desde de peças de lã para confecção de tecelagens a cds piratas de bandas que nao falam a minha lingua.

A notícia veio logo cedinho. Martinha olhou para mim e disse sem dó: "âne, não dá mais. Sei que você é eficiente, mas vou fechar a loja". Perguntei a razão e ela disse com um belo sorriso no rosto: "Tô voltando pra minas. Minha mae morreu e me deixou uma bolada. A loja tá fechada e já vendi para o tal empresário do prédio grande. Ele vai transformar o espaço em um edifício de escritórios."

'Me encontro aqui, agora, neste exato momento, sem logradouro, sem comida, sem dinheiro, sem trabalho, sem perspectiva. Tudo bem, nunca tive perspectiva mesmo. Tava resignada em passar o resto da minha vida vendendo quinquilharias numa loja de quinta, mesmo'. Mas Fernando desacreditava na história da garota. Mesmo sem um lugar para ir, ele deveria ajudá-la também.

Caso ela recusasse a oferta de morar no apê sujo que ele chamava de lar, não custava tentar chamá-la. E foi o que aconteceu. Depois daquela bebedeira, o casal pegou as trouxinha de roupas e pertences de ângela na lojinha de Martinha e não decidiram mais o que fazer dali por diante. E durante muito tempo foi a esmo que ela viveu.

13 de março de 2007

Um causo, eu te conto!

Acordo bem cedo, mesmo assim o café já não está mais na mesa. Aqui as pessoas acordam antes da aurora. E deve ser por isso que se comportam de maneira tão sadia. A mãe pergunta se está tudo bem. Respondo com cara de enxaqueca e vou logo tomando o remédio. O chá é a melhor opção, mas prefiro o paracetamol. O dia estava muito quente para se ficar em casa. Então ainda com o sol das oito pego Marley no colo e pergunto se quer andar de bicicleta. "Vamos então!", vamos. O mp3 na cintura, uma calça colada preta com uma blusa bem aberta a tira colo e uma câmera fotográfica de bônus no pescoço.

Seguimos em direção ao pequeno colégio. Lá não tem muros. Esta é a razão principal para que João, o pai dos meninos, resolvera matricular-los um pouco mais distante de casa. 'Sabe, um colégio tem que ter regras, e se não tem muro, como as crianças vão brincar no recreio sem que nada aconteça a elas?'. Concordo, em partes. Seria interessante estudar olhando para um janela que dá de frente a 'movimentada' ruazinha de Brasil Novo. Mas não era sobre isso que estava falando.

Depois da primeira curva, onde tem um orelhão telemar que mal funciona, passamos em frente ao Buteco do Pereira. Os homens ainda estão no trabalho e o local se encontra apenas com cachorros em frente. Estão desnutridos, mas não perdem tempo ao ver-nos de bicicleta e nos seguem por alguns instantes. Marley tá bem mais rápido que eu, e começo a preocupar-me com isso. Meus pulmões respiram o ar puro, literalmente. E, então, transpiro. Fico em estado ofegante. É quando resolvo parar com a desculpa de ter visto uma árvore bonita. O menino se convence quando pego a câmera e vou logo apontando para meu objeto. "Tira uma foto minha?". Dou uma desculpa que farei isto mais tarde e ele se satisfaz. Por enquanto.

Já estamos bem longe de casa. Subimos uma ladeira ingrime. Foi neste ponto que tive de descer da minha montaria. Estou cansada. O sol subia rápido quando percebi que já se passava das dez. Corremos muito para alcançar o almoço que estava quase no ponto. O sapequinha foi correndo pra mesa com a desculpa que tava morrendo de fome. Mas era só molequice. A mãe vai logo gritando que temos de guardar as bicicletas e lavar as mãos. Ele obedece a segunda ordem, enquanto vou fazer jus da primeira. Guardo a bicicleta, e resolvo olhar pra trás. Lembrei onde estava, na terra sem lei, e dos avisos alarmados dos amigos que me preveniram para não ser tão indulgente fora de casa. Mas para que desculpar-me com a minha memória. É só mais um dia de calor com estórias de terra com árvores gigantes.

27 de fevereiro de 2007

Capítulo Um

Acordei.
Era esta a sensação que ângela tanto procurava. Mas certas dúvidas ainda circundavam o seu dia. Ao se levantar para o almoço, a garota ainda não sabia se o dia poderia se tornar em um bom ou em um mau dia. Tanto faz, isso não a importava muito. Mas o que importa afinal? Sentada na cama com os olhos fixos na parece descascada, que um dia já adornou posteres de hérois de televisão e desenhos animados, Ângela só conseguia pensar em uma única coisa. Algo que alegrava seus dias sem muita movimentação. E pensou.

Foi até a janela do seu quarto olhar as árvores. Não é facil se manter saudável morando no décimo quarto andar de um prédio de escritórios. Quando ela pensou em se mudar e não tinha para onde ir, passeando pelo centro da cidade cinza, viu um prédio bonito e bem alto. Acostumada a árvores maiores que prédios, a única coisa que passou pela sua cabeça seria a ideia de morar em uma árvore de concreto. E foi assim que se decidiu. Passou um dia, uma semana, meses e ela ainda continuava lá. Talvez seja por isso que pouca coisa muda dentro dela.

A sensação que se obtem ao morar tão distante do solo é que se algum dia, por ventura, se decidir sentir uma boa vibração, pular do décimo quarto andar poderia ser algo reconfortador. Mas não era isso que ela procurava. E nem tentava, também. Era dia de são valentim. E estranhamente uma borboleta branca alcançou a janela do quarto (que algum dia iria se tornar escritório dentário). Borboletas costumam viver apenas um dia. Estranho pensar naquela larva tentando subir tão alto.

Com aquilo na cabeça, e outras tantas distrações, a garota começou a se aprontar. Vestiu o jeans surrado antigo, uma camiseta preta que virara cinza e resolveu enfrentar as ruas. Há alguns anos, o dia quatorze de fevereiro, era quase um dia mítico (por falta de palavra melhor). Sempre acontecia algo bacana. É quase como o primeiro dia do ano, ele vem aos poucos transformando orvalho em calor para depois reverenciar a noite com um tórrido frio. No apartamento de ângela não existem cobertores. E nem geladeira. Por isso logo que desceu as escadas (o elevador fora desativado há muito tempo), sempre sorria para a dona da lanchonete da esquina. As vezes um sorriso pode salvar uma vida. E Ângela sabia disso. Era a sua garantia de sobrevivencia.

As ruas estavam meio molhadas e sujas de papel. No butequim do Seu Geraldo, ela reencontrava amigos de luta. Sergio, Paulo e Fernando já estavam lá quando ângela filava um pão com mortadela (sua salvação). Estava morrendo de fome, e os amigos que sempre a ajudavam perceberam que um sorriso bobo estava em sua face. Mas ela não falava. Não podia. Não queria. Deixar escapar uma palavra é quase que cometer um assassinato. Matar as boas sensações com classificações mundanas do sentido da felicidade. Alegria, para ela, não era contar o que de bom estava acontecendo com seu coração, corpo e algo. Alegria era estar ali. Quieta. Esperando.

E demorou muito até seu pequeno segredo ser descoberto. Enquanto isso, a nicotina, o velho companheiro de instabilidade, inspirava suspiros aleatórios entre uma baforada e outra. É bom não se manter saudável em certos momentos. E diante os últimos dias era só isso que a tornava mais tranquila. Algo acontecia, e ressucitara em seu corpo uma sensação de angustia profunda. Suas teorias de ação e reação já estavam muito batidas, e ela tinha receios de voltar a abrir seu coração. Mas a vontade de não evitar era tão forte.

Em um dos dias mais cinzos da última semana, quando ângela passeava na esquina da rua parda, seu coração disparou. Fulminante como uma parada cardiaca, a menina-mulher não teve reação. Ela o vira. Pobre rapaz. Sua beleza era estarrecedora, e o olhar inquietante. Assim como ângela, e foi por este sentido de que a disparada nao era recente que a angustia cresceu dentro da menina. Foi muito rápido, não deu para fazer muita coisa, a não ser sorrir. E foi exatamente o que fizeram. Desde então, a menina planejava sua rotina voltada a busca daquele sorriso. Era só isso que a tornava alegre. E ela queria muito voltar a ser.

1 de fevereiro de 2007

Com lágrimas no rosto

Mais um dia primeiro passa. Será que notaram? Não, só eu costumo notar detalhes de um dia-a-dia que ninguém acha interessante. Decoro datas, locais, roupas, personagens de filmes bobos. Mas tenho um pecado. Não consigo decorar rostos. E pelo visto, aquele rosto não é mais conhecido meu. Não o reconheço. Fico o dia todo tentando lembrar como era o seu olhar quando me via alegre. Não sei se era gentil, meigo ou apenas um olhar compadecido. Não importa mais se o fogo que queimava seus olhos não percorre mais os meus sentidos. Não sinto mais.

Tem hora que até consigo lembrar quando a chuva caia no chão e molhava minha calça jeans e tenis allstars desbotados. Como era estar feliz no final de um filme comercial americano, que a critica vivia dizendo que era vazio e sem conteudo, mas que eu adorava e ria atoa. Até lembrei de como era legal ser criança nos anos oitenta e escutar michael jackson sem ser brega. Ah, devo dizer que voltei a escutar e ele está no meu coração, por menos cor-de-rosa que ele esteja.

Desbotei. Derramei todo o meu sentimento no chão e não consigo secar com o pano. Dudu, minha companheira, uma vez ou outra mia quando imagino que ela diz: "não fique assim. Vai passar." Mas não passa. De manhã, acordo com o pensamento longe. Como se as arvores gigantes ainda estivessem por perto, dizendo numa lingua desconhecida que protegem o homem, apesar dele as derrubar. Então é assim, destruimos o que é essencial para nossa vida e mesmo assim continuamos a sobre-viver.

Quero voltar para todas aquelas nuvens, que de tão baixas, por um instante, parece que é só esticar a mão para toca-las. Voltar para um passado de menina-moça, ingenua e sem nenhuma preocupação. Porque parece que quando somos adolescentes nada de ruim pode nos alcançar? Nenhuma tristeza é totalmente triste, e todas as alegrias estão a um passo de acontecer. Sinto falta disso. De ser jovem. O bacana deste estória de crescer é que tudo o que dizemos que aconteceu pode não ter acontecido. Quem sabe que aquela história que eu contei da minha juventude perdida não foi fruto da minha imaginação? Eu sei.

Alguem leu a minha mao e me disse que eu morreria velhinha. E que aquela promessa que fiz beem baixinho no pé do seu ouvido não se tornará realidade. Tenho minhas dúvidas. Mas um vidente nunca erra. O parente morreu, eu me transformei e hoje não compartilho mais sentimentos. Queria que ele tivesse lido que ganharia uma fortuna em jogos de azar. Isso seria bacana. Mas irreal.

Sequei. As lágrimas que estavam aqui não sei onde foram parar. Todo dia muitos seguem perguntando se estou bem. E a única resposta que consigo dar é que estou legal. Apesar dos infortúnios. Tudo seria mais fácil se meu nome fosse ângela. Não sei. Acho que as nacionais devem sofrer menos que as nao-orientais.

f.i.a.s.c.o

Tudo é o que parece ser. Porém, com um requinte de crueldade que só os aborrecidos sabem proferir. Tem coisas que os pais ensinam, mesmo não dizendo que ensinam. Sou desconfiada e ironica de pai e mae. Enquanto os vizinhos escutam sertanejo, eu prefiro o velho sabbath. Um magro e feio pintcher marron de minha mae.

Killing yourself to live. Maybe not.

16 de janeiro de 2007

A senhora gosta de Tatu?

O céu esteve bonito e claro durante todo aquele dia, apesar da chuva ao cair da noite. Antes da cidade de Paraíso-TO o ônibus parou. Eram mais ou menos 500 metros antes da entrada da cidade, o motorista de repente some. Todos dentro do veículo passam do semi-sono para uma realidade próxima do semi-pânico. Uma mulher na poltrona vinte, que esteve acordada durante boa parte daquela madrugada, levanta.
"- O que será que está acontecendo?", a maioria das pessoas se pergunta. Enquanto a mulher responde a pergunta com uma certa dúvida e muita calma. "Deve ser um assalto", ela diz, enquanto todos começam a se agitar. "Vou ver", ela se aproxima da cabine do motorista e não avista ninguém. E volta ressoluta para sua poltrona. "Deve ser mesmo um assalto".

Nesta hora, aqueles que tinham alguma dúvida sobre o ocorrido começaram mesmo a temer algo do tipo. Mas outra mulher [poltrona vinte e um], que durante a viagem conversou bastante com a vizinha de poltrona [a senhora da vinte], levanta e acha tudo um pouco diferente. Então ela se questiona: "Se for um assalto, então porque não entram no ônibus?". É uma boa pergunta. São quatro e cinco da madrugada e já se pode visualizar o motorista do lado de fora do ônibus carregando algo. È aí que a senhora da poltrona vinte e um direciona-se para a cabine do motorista.

"- O que aconteceu? Por que paramos?", ela pergunta ao motorista. E ele de bom humor, com um sorriso largo no rosto, afirma:
"- Eu vi um tatu quando me aproximava da rodovia. Então resolvi descer. Só que o bicho é mais esperto que eu, e me deu uma carreira! haha. Pode? O bicho foi rápido, mas eu fui mais. Taquí o bicho. A senhora gosta de tatu?"

Uma risada se sucedeu as informações. A senhora do vinte e um volta para a poltrona e acalma os outros passageiros. "Esse motorista é muito engraçado". A preocupação se dissipou, e com ela a viagem seguiu até Guaraí. As senhoras do vinte e vinte e um olham estranho para o motorista que assim que encontrou um amigo, resolveu presenteá-lo com o bicho. "Uai, o senhor teve tanto trabalho pra pergar o tatu e vai dá-lo de presente?", pergunta a senhora do vinte e um, esperando pacientemente por uma explicação. A resposta que se seguiu foi esta: "Oras, é só um tatu. Depois eu pego outro".

11 de janeiro de 2007

A Liturgia da morte

A menina crescida olhava para a caixa e pareceu não acreditar. Aquele que está deitado não dorme, e muito menos repousa. Os olhos inchados de quem chora são também parecidos com o do defunto. Três tiros no rosto, foi o que contaram. Mais alguns espalhados pelo corpo. Uma senhora disse que foram quinze furos. Mas o rapaz que chegou cedo e encontrou o corpo no chão, em frente ao bar no setenta [KM da Transamazonica - sentido Altamira/Medicilândia], informou que vira mais de trinta.

Não é de se acreditar. Triste saber que alguém parte. Ainda mais quando este é um parente. E muitos passaram na Capela Mortória no dia trinta e um. A festa de ano novo fora trocada por um cortejo fúnebre. Mais de dez caminhões e muitos carros, que deixaram seus pisca-alertas ligados, acompanhando o sepulcro de um homem. Aquele que fora bom para uns e ruim para outros. Uma briga, onde a humilhação venceu a notoriedade daquele homem, o fez partir.

Ainda dentro da capela a rezedeira começa seu serviços. Antes da presença do padre, a velha senhora anuncia o inicio do terço. A ladainha ia alta na tarde quente de Altamira. Mais da metade da cidade passou por lá, ora para verificar se realmente era verdade, outra para dar pessames aos famíliares. Uma esposa, mãe de cinco filhos. Três meninos e duas meninas. Crianças grandes e de vida feita, com filhos e casa própria. O mais novo expressa no olhar o que todos alí viam com clareza. O pesar, a perda. Talvez por não ter vivido muito tempo próximo ao homem dentro da caixa. Ou ainda por não dizer o que gostaria ao pai distante.

Após o enterro, Dostoiévski falou mais alto do qualquer palavra. Quando morremos deixamos de existir. Definitivamente. A representação do corpo é muito valorizada nas sociaedades ocidentais. Não se sabe quem ele foi, quem amou. Se houve bondade ou ruindade em suas relações. Só se sabe que o que resta dele cabe em uma caixa sem flores, e depois nem isto restará. Agora, por mais que Zé Bento, tivesse um nome forte na região, o que ele realmente foi não é mais.

Somos feitos de lembranças. Quando não restar mais ninguém para recordar, elas desaparecerão. E o que resta é apenas uma vestigem do que realmente fomos.

Ante-vespera do feriado, dia trinta de dezembro de dois mil e seis. As quinze horas [horário de Manaús].

28 de novembro de 2006

Alguém morreu na minha quadra

Depois de dois dias minha mãe contou-me que alguém havia morrido na minha quadra. Ao se tratar de uma cidade como o Recanto das Emas, achei muito normal acontecer. Mas não pude. Era um homem de oitenta anos. Eu ignorava a existência dos seus serviços prestados à Polícia Militar do Distrito Federal. Era um policial aposentado e tinha oitenta anos de idade.

Sem família, morava só em uma casa de esquina na quadra 110. Uma mulher cuidava de sua saúde e da arrumação da casa. Ela encontrou o corpo. Em poucos minutos havia se ausentado da casa para comprar leite. Quando o acontecido se abateu sobre a residência. O que torna uma pessoa infeliz?

Havia uma arma na casa. E o assassino sabia onde a encontrar. Eu sempre ignorei o fato de alguém portar uma arma na minha quadra. E que, talvez, esta mesma arma terminasse com a vida de alguém. Todo manhã, ao sair de casa, eu costumava passar por aquela esquina. Nunca notei que um senhor de oitenta anos sempre se sentava num banco. Mas ao saber desta tragédia, não deixei de conferir se, algum dia, poderei rever a cena. E não vou.

Esse tipo de noticia não sai no jornal. Principalmente em Brasília. Ex-policial de oitenta anos comete suicídio no Recanto das Emas. Na semana anterior uma jovem se jogou do décimo andar de um prédio, no centro bancário da cidade. Em outro, foi a vez de um rapaz fazer o mesmo, só que em um shopping. O que os torna semelhantes? Apenas o fato que todos decidiram abandonar suas angustias para os que ficam ao invés de resolvê-las sem o penar da morte. Respostas faltam a tais perguntas. Sejam elas feitas na periferia ou na capital.