16 de janeiro de 2007

A senhora gosta de Tatu?

O céu esteve bonito e claro durante todo aquele dia, apesar da chuva ao cair da noite. Antes da cidade de Paraíso-TO o ônibus parou. Eram mais ou menos 500 metros antes da entrada da cidade, o motorista de repente some. Todos dentro do veículo passam do semi-sono para uma realidade próxima do semi-pânico. Uma mulher na poltrona vinte, que esteve acordada durante boa parte daquela madrugada, levanta.
"- O que será que está acontecendo?", a maioria das pessoas se pergunta. Enquanto a mulher responde a pergunta com uma certa dúvida e muita calma. "Deve ser um assalto", ela diz, enquanto todos começam a se agitar. "Vou ver", ela se aproxima da cabine do motorista e não avista ninguém. E volta ressoluta para sua poltrona. "Deve ser mesmo um assalto".

Nesta hora, aqueles que tinham alguma dúvida sobre o ocorrido começaram mesmo a temer algo do tipo. Mas outra mulher [poltrona vinte e um], que durante a viagem conversou bastante com a vizinha de poltrona [a senhora da vinte], levanta e acha tudo um pouco diferente. Então ela se questiona: "Se for um assalto, então porque não entram no ônibus?". É uma boa pergunta. São quatro e cinco da madrugada e já se pode visualizar o motorista do lado de fora do ônibus carregando algo. È aí que a senhora da poltrona vinte e um direciona-se para a cabine do motorista.

"- O que aconteceu? Por que paramos?", ela pergunta ao motorista. E ele de bom humor, com um sorriso largo no rosto, afirma:
"- Eu vi um tatu quando me aproximava da rodovia. Então resolvi descer. Só que o bicho é mais esperto que eu, e me deu uma carreira! haha. Pode? O bicho foi rápido, mas eu fui mais. Taquí o bicho. A senhora gosta de tatu?"

Uma risada se sucedeu as informações. A senhora do vinte e um volta para a poltrona e acalma os outros passageiros. "Esse motorista é muito engraçado". A preocupação se dissipou, e com ela a viagem seguiu até Guaraí. As senhoras do vinte e vinte e um olham estranho para o motorista que assim que encontrou um amigo, resolveu presenteá-lo com o bicho. "Uai, o senhor teve tanto trabalho pra pergar o tatu e vai dá-lo de presente?", pergunta a senhora do vinte e um, esperando pacientemente por uma explicação. A resposta que se seguiu foi esta: "Oras, é só um tatu. Depois eu pego outro".

11 de janeiro de 2007

A Liturgia da morte

A menina crescida olhava para a caixa e pareceu não acreditar. Aquele que está deitado não dorme, e muito menos repousa. Os olhos inchados de quem chora são também parecidos com o do defunto. Três tiros no rosto, foi o que contaram. Mais alguns espalhados pelo corpo. Uma senhora disse que foram quinze furos. Mas o rapaz que chegou cedo e encontrou o corpo no chão, em frente ao bar no setenta [KM da Transamazonica - sentido Altamira/Medicilândia], informou que vira mais de trinta.

Não é de se acreditar. Triste saber que alguém parte. Ainda mais quando este é um parente. E muitos passaram na Capela Mortória no dia trinta e um. A festa de ano novo fora trocada por um cortejo fúnebre. Mais de dez caminhões e muitos carros, que deixaram seus pisca-alertas ligados, acompanhando o sepulcro de um homem. Aquele que fora bom para uns e ruim para outros. Uma briga, onde a humilhação venceu a notoriedade daquele homem, o fez partir.

Ainda dentro da capela a rezedeira começa seu serviços. Antes da presença do padre, a velha senhora anuncia o inicio do terço. A ladainha ia alta na tarde quente de Altamira. Mais da metade da cidade passou por lá, ora para verificar se realmente era verdade, outra para dar pessames aos famíliares. Uma esposa, mãe de cinco filhos. Três meninos e duas meninas. Crianças grandes e de vida feita, com filhos e casa própria. O mais novo expressa no olhar o que todos alí viam com clareza. O pesar, a perda. Talvez por não ter vivido muito tempo próximo ao homem dentro da caixa. Ou ainda por não dizer o que gostaria ao pai distante.

Após o enterro, Dostoiévski falou mais alto do qualquer palavra. Quando morremos deixamos de existir. Definitivamente. A representação do corpo é muito valorizada nas sociaedades ocidentais. Não se sabe quem ele foi, quem amou. Se houve bondade ou ruindade em suas relações. Só se sabe que o que resta dele cabe em uma caixa sem flores, e depois nem isto restará. Agora, por mais que Zé Bento, tivesse um nome forte na região, o que ele realmente foi não é mais.

Somos feitos de lembranças. Quando não restar mais ninguém para recordar, elas desaparecerão. E o que resta é apenas uma vestigem do que realmente fomos.

Ante-vespera do feriado, dia trinta de dezembro de dois mil e seis. As quinze horas [horário de Manaús].